Pode um cristão protestante votar em candidatos de esquerda?

                                                  



    A pergunta que mais tenho ouvido nestes dias que precedem a eleição é: “Como um cristão que afirma ter a bíblia como única regra de fé e prática pode defender candidatos e partidos cujas ideologias são contra os ensinos de Cristo?”. Os que fazem esse questionamento transmitem sentimentos de estranhamento e até indignação. Tento pacificá-los, pois não é um tema simples de ser pensado, considerando-se que nas intenções humanas existem variáveis insondáveis, profundamente íntimas, conhecidas somente por Deus. Como escrevo para cristãos protestantes, deixo aqui minha compreensão pastoral a partir de experiências pessoais, leituras políticas e verdades históricas derivadas da formação teológica.

          As palavras que escrevo aqui, procurei dizê-las com brandura, a fim de que ninguém se sinta desanimado ou constrangido, apenas edificado. Trata-se de um esforço em descansar o coração no Único que nos concede discernimento para compreendermos se estamos ou não em sua vontade, uma atitude incentivada pelo apostolo Paulo quando escreveu a igreja de Corinto e que importa ser feita frequentemente por nós (2ª Co. 13:5). ______________________________________________________________

Não cabe aqui explicar toda a problemática histórica, mas, de maneira geral, no Brasil, pertencer ao espectro político da esquerda significa defender pautas progressistas, ou seja, buscar transformações radicais em termos econômicos e também culturais, enfatizando o poder do Estado no combate à pobreza e à desigualdade social.

Já a Direita, tem em sua tradição política um sentimento reacionário ante mudanças sociais repentinas, especialmente aquelas que envolvam valores julgados fundamentais à saúde de suas instituições. Dentre os princípios defendidos, estão o da liberdade individual, proteção da propriedade privada e menor intervenção do Estado na vida do sujeito. Vale dizer que todas as definições são imprecisas, apenas servem como referência.

          É importante dizer que o cristianismo bíblico não é de esquerda nem de direita. O Reino está acima dos dois espectros. Apesar de, a meu ver, ter mais pontos de aproximação com a direita, o evangelho também tem preocupações comuns ao discurso da esquerda, especificamente, os relacionados ao cuidado, provisão e proteção dos vulneráveis. No entanto, a busca pelo Reino e a sua justiça é a prioridade do crente (Mt. 6:33). Na cosmovisão bíblica, nenhuma autoridade político-governamental está acima de Cristo. Ele é Soberano sobre seu povo, sua igreja; cada indivíduo será julgado conforme suas próprias obras; este mundo é um lugar de peregrinação fadado a destruição; e até a consumação do Seu plano, devemos pregar o Evangelho e praticar o amor a Deus e ao próximo.

          A dupla cidadania dos cristãos (terrena e celestial) e a missão como embaixadores de Cristo, faz com que não vivam em ostracismo social. Por isso, mais do que com a economia, os discípulos de Jesus se preocupam em "conservar as tradições que vos foram ensinadas" (2ª Ts. 2:15). Esta é uma das razões dos embates ideológicos com o pensamento de esquerda.

É devido a este zelo que bandeiras como aborto (morte no ventre), feminismo (desconfiguração da mulher), ideologia de gênero (sentimento acima da biologia, linguagem neutra), desconstrução da família tradicional (dia do cuidador, ao invés dos pais), liberalização das drogas (maconha), desencarceramento por “pequenos delitos”, controle da mídia e apreciação a regimes totalitários são propostas e posturas profundamente rejeitadas por comunidades que tem a Bíblia e a tradição cristã como fundamentos de sua existência.

Em toda essa discussão, a pergunta que não quer calar é: pode um cristão votar em partidos de esquerda?

      Primeiro, importa definir o que se entende por “cristão", pois enquanto os primeiros discípulos foram assim denominados por obedecerem fielmente aos ensinos de Jesus Cristo (At. 11:26), no Brasil, milhares de pessoas usam o termo “não praticante" para expressar a identidade de sua fé. Tal confissão é contraditória, incoerente (Lc. 6:46-49, 9:23). Nesse sentido,       À luz dos ensinos bíblicos, o cristão é todo aquele que, iluminado pela pregação do Evangelho, reconheceu-se pecador distante de Deus e, arrependido, creu em Jesus como seu único Senhor e Salvador, passando a viver integralmente para agradá-lo, abandonando práticas mundanas, dedicando-se a amar a Deus e ao próximo.

A experiência de conversão é um acontecimento miraculoso, transforma hábitos, cura sentimentos, pacifica relacionamentos e conforma a visão de mundo aos padrões da Palavra inspirada. Tal mudança não é imediata, nem final, mas progressiva. Exige tempo, estudo do conhecimento bíblico, vida de oração, serviço ao próximo, adoração.

Em nenhum momento, Jesus disse que os seus discípulos seriam identificados pela eloquência, prosperidade material ou filosofias políticas. Também nunca escondeu o fato de existirem pessoas que apesar de o chamarem “senhor”, não pertenciam a Ele (Mt. 7:21-23). Desde cedo, sabia da presença de traidores, covardes e hipócritas entre os que o seguiam (Jo. 6:64). O preço do seu discipulado (Lc. 14:25-33) faz concluir que ser batizado, casado na igreja ou frequentar templos, pode até produzir registros em documentos da instituição, mas não no nome no Livro da Vida (Ap. 20:11-15). Em todos os seus ensinamentos, o Mestre deixou claro que um pecador não convertido será incapaz de produzir os frutos éticos do Evangelho.

    A ética do Evangelho penetra todas as áreas da vida do cristão, inclusive a política. Princípios como laicidade do Estado (Mt. 22:21), obediência às autoridades instituídas (Rm. 13:1-7; 1 Pe. 2:11-25), cooperação no serviço social (Tt. 3:1), pagamento de impostos (Mt.17:27), oração pelos governantes (1 Tm. 2:1, 2), resistência à ordens injustas (At. 5:28, 29) e denúncia de atos corruptos e imorais (Jo. 6:18-20; Ef. 5:11-13) são abundantes em seu Manual de vida.

No entanto, é preciso usar o bom senso e reconhecer que nem todos os seguidores de Cristo têm o mesmo nível de maturidade. A maioria dos membros da igreja evangélica apenas frequentam cultos dominicais. Poucos são assíduos à Escola Bíblica ou investem em leituras teológicas. E em se tratando de consciência política, a preocupação se amplia, pois é um déficit cultural também presente no interior da igreja. Considerando fatos assim, penso em algumas hipóteses para entender o voto cristão na esquerda:

1.    Por priorizar personagens e não ideias. É a escolha apaixonada ou a rejeição amargurada. Criam-se expectativas que geralmente terminam em negação, frustração ou culpabilização. O critério é fortemente estético-emocional: a fisionomia, o jeito de falar, o humor do candidato. As campanhas publicitárias investem nisso, recortam falas, ampliam maus feitos, repetem narrativas e colam rótulos, reproduzidos ingênua e/ou maliciosamente.

 

2.    Conveniência ou medo de perder status. É o voto cooptado pelo Estado paternalista, que sequestra o senso crítico por meio de "benesses". O sentimento de dívida a programas de transferência de renda ou financiamento, faz concluir que não votar nele é traí-lo ou, no mínimo, ser ingrato. Teme-se perder a "ajuda" ou, quando se é funcionário público, ser perseguido ou cancelado.

 

3.     Por doutrina política. É o voto intelectualizado, com utopias que sustentam a militância marxista hegemônica. Filosoficamente, é impossível um cristão protestante vincular-se ao materialismo histórico-dialético, pois este nega a intervenção Divina e sua revelação aos homens, promovendo idolatria ao Estado e apontando a economia como fundamento da ética. Onde implantou-se essa doutrina, a fé cristã terminou estatizada, perseguida ou eliminada.

 

4.     Não visualiza a expansão do Reino, a Igreja. A intenção de implantar um Estado cristão não está no Evangelho. Já temos um Rei, já somos um reino (Ap. 1:5, 6). Por isso, em termos políticos, a única petição pela qual os cristãos são exortados a interceder é para que os governantes deste mundo os deixem em paz, garantindo-lhes tranquilidade e liberdade de cultuar, praticar e pregar a sua fé (1 Tm. 2:1,2).


            Por fim, penso que um cristão, teológica e espiritualmente saudável, se fará perguntas como: qual dos dois candidatos ameaça à liberdade da igreja? Qual, em seus discursos e projetos, tende a limitar a prática missionária? Ignorar questões assim pode apenas sinalizar uma espiritualidade contaminada pela paixão política, todavia, se o voto fundamentar-se conscientemente em torpes pautas da esquerda, tal pessoa nega a fé ou, no mínimo, a põe sobre a mesa da dúvida.

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